Opinião de Sílvia Martins, Licenciada pelo Instituto Superior de Serviço Social de Lisboa 

Sílvia Martins

A minha aventura começou há já quase nove anos. Após o meu marido ter recebido um convite para trabalhar na região de Paris decidimos partir até França.

Acredito que o facto de termos ido de “livre-vontade” (não fomos por estar desempregados ou numa situação precária) fez com que as dificuldades encontradas fossem encaradas com ânimo. E se foram muitas, essas dificuldades.

Para começar a língua – tudo o que sabíamos havia sido aprendido há mais de dez anos na escola. Procurei um curso de francês para estrangeiros mas, por incrível que pareça o facto de ser europeia constituía uma dificuldade acrescida – a interpretação de alguns era que o Fundo Social Europeu não permitia aos europeus usufruírem do ensino gratuito da língua francesa (tive mesmo alguém que me disse que se eu era europeia falava o francês – claro que retorqui que a senhora também devia falar o português dado que também é uma língua europeia…). Posteriormente a França foi advertida pela Comissão Europeia que não poderiam continuar a recusar o ensino do francês aos europeus pelo que tentei novamente… Desta vez também não podia fazê-lo porque o ensino era reservado aos pouco escolarizados pelo que eu, com um curso universitário, devia ter vergonha de tirar o lugar “aos outros”, ir para casa ler o jornal e ouvir rádio… Que ridículo (devem estar a pensar), mas este é apenas um exemplo das muitas dificuldades que temos de enfrentar quando nos encontramos num país em que não falamos a língua, não conhecemos os dispositivos, a organização social…

Fui aprendendo a língua no dia-a-dia e procurei então saber o que fazer para exercer a profissão de assistente social.

A legislação francesa é muito clara em relação ao exercício da profissão.

As diferenças começam na própria formação. Esta decorre em três anos a seguir ao 12º ano (sendo reconhecida no final como nível Bac+2), é de cariz não universitário e o acesso à mesma faz-se através de concurso com provas escritas e, muitas vezes, uma entrevista.

Há alguns anos fez-se uma “reforma” do diploma de Assistente Social em que o ensino passou a ter orientações mais claras em relação à “ISAP – intervenção social de ajuda à pessoa” mas também à “ISIC – intervenção social de interesse colectivo” (que até então havia sido descurada). O trabalho social de grupos ou a intervenção comunitária que para um assistente social português são intuitivos e amplamente experimentados é, ainda hoje, algo de demasiado complexo/difícil de executar para a maioria dos assistentes sociais franceses.

No final desses anos de estudo os estudantes devem ser aprovados em quatro provas/domínios de competência: DC1 – Dossier de práticas profissionais (em que o formando deve apresentar uma ISAP e uma ISIC), DC2 – “mini” Tese, DC3 – Avaliação do centro de formação (o que inclui as provas realizadas assim como os estágios), DC4 – Prova escrita de políticas sociais. Apenas o Domínio de Competência 3 (DC3) é feito no e pelo centro de formação, os restantes são avaliados por várias comissões de júris regionais constituídos por um representante de instituições, profissionais da acção social ou um professor do ensino superior, um formador ou representante dos centros de formação e um profissional do terreno. Se o aluno receber nota positiva (10/20) nos quatro domínios recebe o “Diploma do Estado Francês de Assistente de Serviço Social” que lhe permite utilizar o título profissional de Assistente Social. Caso reprove a um dos domínios terá de o repetir para conseguir o diploma.

No caso dos Assistentes Sociais estrangeiros devem fazer um pedido de reconhecimento da sua formação para poderem, também eles, utilizar o título de Assistentes Sociais. No caso dos europeus recebem uma “Autorização de Exercício em território francês” no caso dos outros estrangeiros recebem um diploma francês.

No caso dos europeus se a pessoa justificar formação e experiência profissional dita “relevante”, é-lhe atribuída a Autorização senão são-lhe propostas duas alternativas para validar a sua formação/experiência: realizar uma prova nacional de políticas sociais (como na formação inicial) ou realizar uma formação de adaptação.

Esta formação de adaptação tem uma duração de cerca de seis meses e consiste em aulas que nos permitem uma compreensão mais clara da organização territorial francesa, as organizações, dispositivos, instituições. Realizamos igualmente um estágio com um assistente social o que permite o aperfeiçoamento da língua (falada e escrita) assim como uma prática profissional com “formas de fazer” potencialmente diferentes das nossas.

No final dessa formação devemos redigir um documento final constituído por uma descrição de uma ISAP (intervenção individual) e de uma ISIC (intervenção colectiva) em que o profissional deve conseguir fazer a ligação entre a sua formação inicial, experiência profissional e experiência de estágio em França. Esse documento é avaliado por júris constituídos pelos mesmos profissionais que na formação de base e o profissional estrangeiro deve ainda fazer uma defesa oral desse mesmo documento assim como dos seus conhecimentos da realidade social francesa (legislação, organização territorial e social, parcerias, entre outros).

Este ano tive a possibilidade de participar como membro dos júris quer da formação inicial quer da formação de adaptação o que foi, para mim, uma experiência muito interessante.

Em França existem diferentes tipos de deficiência reconhecidos, entre eles, a chamada deficiência psiquiátrica (pessoas com esquizofrenia, psicoses, borderline, bipolares, entre outras). Há já cerca de sete anos que exerço a profissão junto de pessoas portadoras de deficiência psiquiátrica e mental (ligeira), numa empresa em Paris.

O trabalho em parceria é essencial para realizar um acompanhamento social de qualidade destas pessoas que estão integradas no mundo laboral (ainda que adaptado às suas dificuldades – falta de concentração, absenteísmo, efeitos secundários da medicação, entre outros) e a verdade é que muitas dificuldades que eles enfrentam foram as que também eu enfrentei aquando da minha chegada a França (dificuldades em obter documentos, em contactar serviços, em usufruir de todos os direitos sociais, das prestações sociais e legais).

Ao longo deste percurso laboral tive também a oportunidade de acolher estagiários da formação inicial mas também colegas assistentes sociais portugueses que passaram pelo mesmo processo de validação das suas competências profissionais.

O exercício profissional em França é complexo, é um “esforço contínuo” para um profissional que não nasceu cá mas é recompensador saber que num país que não é o nosso conseguimos mostrar a qualidade da formação em Serviço Social ministrada em Portugal, a nossa assertividade, trabalho árduo, capacidade de adaptação, capacidade teórica e técnica, as quais são reconhecidas pelos empregadores e louvadas pelos colegas.

Espero que esta pequena partilha vos permita conhecer um pouco do que é ser assistente social português em França.

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